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Além do "quica daqui" e do "senta ali"

Nossa reportagem foi para uma noitada de funk e conversou também com artistas que pensam o gênero de outro jeito


Uma rua escura... é fim do dia e as pessoas que trabalham nos edifícios próximo à casa noturna já foram embora. As calçadas e ruas, começam a ser frequentadas por jovens de todas as idades, homens e mulheres, sem distinção. Eles com bermudas, calças e camisetas, elas com shorts, vestidos, saias, o que a imaginação e o estado de espírito permitir. Vendedores ambulantes começam a acomodar seus carrinhos de bebida alcoólica, outros a montar suas barracas com lanches para venda. Logo dá para localizar a entrada do baile, com seguranças a postos e disciplinadores - pequenas grades de ferro - expostas pela calçada. Na porta, é solicitado documento de identificação para realizar o pagamento e a revista em pessoas e bolsas. Um vão, o chão de ladrilhos, cheiro de cigarro e bebida se misturam. As luzes raras fazem com que só se veja outra pessoa quando se está muito próximo. É preciso pedir licença para chegar perto do palco. A casa está lotada, a música consegue envolver todos que estão no lugar e começam a dançar. A azaração entre as pessoas ‘começa a rolar’. As caixas de som tremem com os beats das batidas e o palco ganha espaço com coreografias do gênero. Em bailes assim, há quem cante e dance sem lembrar que há letras machistas. No entanto, cresce, entre o público feminino, a consciência sobre o assédio mesmo nesse ambiente. Mas ainda tem quem faça pouco caso sobre isso.


“Não vejo diferença no funk, pra mim pode estar tocando qualquer coisa, a gente ‘tá’ ligado na batida”, diz a universitária, Maria Eduarda de Jesus. Entre um gole e outro no copo de bebida, o empresário e universitário Matheus Raiol fala que as letras do gênero é algo que, “está incrustado na cultura do Brasil, não que seja algo que incite totalmente a violência”.


“Quem é, que quando passa já te deixa tonto? Quem é, que te provoca, te deixa no ponto? Quem é, que só de rebolar te enlouqueceu? Quem é? (..) A danada sou eu.

Atrevida. Eu tô livre e tô solta na pista, desse jeito eu me jogo na vida e a festa vai até de manhã (de manhã). Esquece, tô sozinha e não quero estresse, eu tô fora de cara chiclete, eu te quero mas deixa pra amanhã (pra amanhã)”. (Mc Ludmilla)


Em meio à barulheira, a universitária Marina Ribeiro, de 22 anos, reconhece as letras que são cantadas hoje em dia têm raízes culturais no seio da sociedade. Frequentadora de festas do gênero, ela conta que "Um MC tem representatividade naquele lugar que ele mora, porque o cara conseguiu subir na vida, então ele influencia outros meninos com as letras dele e com a vivência (…) Não sou a favor das músicas que depreciam e não danço". Ela estava em pé à espera da próxima música.


"Eu adorava sair com as minhas irmãs para dançar. Temos a mesma idade e sempre saíamos no fim de semana. Quando tocava Claudinho e Buchecha íamos ao delírio", relembra a editora Angela Dutra, 44 anos, que já frequentou lugares como esse. Hoje, casada e mãe de dois filhos, ela conta que atualmente ficou difícil encontrar músicas que passem uma mensagem positiva no funk. "Escutamos muito do, 'quica aqui', 'senta ali', 'bate nela', entre outras coisas chulas. Como mulher, não me sinto representada nessas letras e vejo que o sexo feminino é quase sempre ridicularizado. Como mãe, educo os meus filhos mostrando que este não é o tipo de comportamento nem linguagem adequada em especial com as mulheres".


As músicas que tocam nas casas noturnas ficam também nas listas das mais ouvidas das rádios comerciais. O funk é febre nacional e agita festas em todo o país. Embora tenha conquistado espaço nos rankings de músicas mais ouvidas do Brasil, segundo pesquisa feita pelo site Criadores ID, que dos 10 maiores canais de música do Youtube Brasil, quatro são de funk. Algumas letras apresentam conteúdo considerado abusivo e violento, principalmente às mulheres.


As letras que nos anos 80 alertavam e denunciavam a precariedade da vida nas favelas, a violência e a discriminação, hoje a maioria apresenta o desrespeito com o sexo feminino, tratando a mulher como objeto, promovendo assim a perpetuação de um comportamento machista na sociedade. “O funk tende a ser próximo porque conhece a realidade daquela comunidade que é mais vulnerável em vários sentidos, mas ele pode ser mais do que isso, mais do que apenas trazer uma suposta realidade de violência, pode também desconstruir essa cultura, ter funcionalidade social”, destaca a professora de Ciências Políticas, Gabriela Andrade.


No final do ano de 2017, a música "Surubinha de Leve", de autoria do MC Diguinho, viralizou não só nos bailes funk carioca, como também em todo o Brasil por meio da internet. A "canção" provocou inúmeras ações na justiça e o autor acusado de incitar deliberadamente o estupro. "Só surubinha de leve com essas filhas da puta, taca a bebida, depois taca a pica e abandona na rua". O verso, violento e abusivo, provocou as mais diversas reações nas redes sociais, dentre elas, denúncias de usuários que não se calaram diante do desrespeito.


A Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, do governo federal, divulgou uma nota de repúdio à canção de Mc Diguinho - "Surubinha de leve" e também a do MC Denny, "Vai faz a fila".


"A música é uma manifestação cultural legítima, mas não pode ser ferramenta incentivadora de crime, sendo necessária a tomada de providências legais contra autores, intérpretes e divulgadores. A investida sexual sem o consentimento da mulher, ou em qualquer circunstância que lhe provoque perda de consciência, caracteriza violência sexual e pelo novo Código Penal é enquadrado no crime de estupro e crime de estupro de vulnerável, respectivamente", destacou a Secretaria. O órgão ressaltou ainda o Anuário da Segurança Pública, onde consta que 49.497 mulheres sofreram estupro em 2016.


À época em que música foi lançada, a assessoria do cantor, Mc Diguinho divulgou nota de desculpa. “MC Diguinho reconhece o conflito de informações devido a toda repercussão. O mesmo informa que, em sua residência, mora com a sua mãe, irmãs e uma sobrinha. Jamais iria denegrir a honra e moral das mulheres. Em respeito a tudo isso, a música será lançada na versão light”. O som foi modificado na parte do refrão para “só uma surubinha de leve, com essas mina maluca, taca a bebida, depois taca e fica, mas não abandona na rua”.


MC Carioca, natural do Rio de Janeiro mas com carreira consolidada em Brasília, conta que algumas músicas influenciam a violência. "Uma pessoa um pouco careta quer ficar mais descolado e ouve aquilo e acha que é o legal. Tinha que repreender esse tipo de música sim".






https://soundcloud.com/matheus-de-luca-oliveira-santos-tavares-araujo/mc-carioca





A universitária e ativista feminista Júlia Maria Silva destaca que "as letras de funk retratam o que os autores vivem e como eles veem e tratam as mulheres." Ela afirma que, embora essa seja uma pauta do feminismo, ela dança nas festas ao som do ritmo

musical.





https://soundcloud.com/matheus-de-luca-oliveira-santos-tavares-araujo/julia-maria-silva






Para o produtor musical, Alan Sal, o funk se dividiu em subgrupos, em sua visão é muito bom. "O pessoal que fala mal da mulher, perdeu espaço, não aparece na TV. Quem está em ascensão hoje é o pessoal que canta o funk do bem, o funk coreografia."


A música "Vai faz a fila" trouxe à tona, mais uma vez, a discussão sobre o desrespeito com a mulher. O assunto foi debatido nas redes sociais de forma sucinta utilizando como objeto de discussão as letras de MC Livinho em "Covardia", que tem entre os seus versos, "vou abusar bem dessa mina, toma, toma pica tranquilinha", e "Vai faz a fila", de MC Denny "Vou socar na tua b. sem parar, e se você pedir pra mim parar, não vou parar. Porque você que resolveu vir pra base transar".


Para a professora de Ciências Políticas, Gabriela Andrade, qualquer aspecto, instrumento, que possa ajudar na violência ou na promoção dessa violência, deve ser questionado. "É necessário desconstruir o que cada um dos gêneros significa e ressignificar os papéis de gênero para acabar com os padrões para conseguirmos ter relações mais equilibradas". Ouça o áudio na íntegra.






https://soundcloud.com/matheus-de-luca-oliveira-santos-tavares-araujo/trecho-professora-gabriela





CONTRAMÃO


Por outro lado, ainda existem diversos MCs e DJs que batalham pelo espaço do funk coreográfico e sem violência. É o caso da Mc Jenny, natural de Brasília que completou neste ano de 2018 uma década de carreira. A MC faz shows por todo o Brasil e esteve em turnê pela Europa no último mês. Ela se orgulha muito pelo sucesso no funk melódico e coreográfico.


MC Jenny repudia o estilo "funk ousadia", acusado de fazer apologia às drogas e à agressão a mulheres. "Inclusive fui convidada pelo Romário para debater esse assunto no Senado. Levanto a bandeira do funk, mas não luto pelo funk violento, que faz apologia e fala das mulheres".


Assista abaixo à entrevista da artista brasiliense



Contrário ao preconceito de que o Funk precisaria ter uma linguagem sexual e chula, a Mc tem duas músicas transmitidas na novela infantil "Carrossel", do SBT. "Isso fez com que eu pensasse em um projeto para as crianças porque criança gosta de funk". Hoje, ela tem duas músicas lançadas exclusivamente para as crianças, com uma pegada mais coreográfica e leve. "Tem muita coisa pra mudar. Os culpados são os próprios MCs. Eles poderiam aproveitar o dom e talento que tem para mudar tudo."


Origem do estilo


O funk surgiu no final da década de 1960 e teve sua origem no estilo de música negra norte-americana, por meio da soul music, sofrendo influência R&B (rhythm and blues), rock e psicodélica. O cantor americano James Brown ficou conhecido como o "Rei do Funk", pelo fato de ter trazido inovação ao gênero musical. O funk que é cantado hoje em dia sofre intervenção de outros gêneros musicais que ajudam a compor o estilo do ritmo, como: o hip-hop, rap e electro house.


Nos anos de 1990, os Mcs, cantores de funk como são chamados, escreviam as letras das músicas com os problemas que vivenciavam na própria comunidade. Na época, surgiu o funk melody, músicas que narravam histórias de amor de uma forma descontraída e dançante e, também o funk "proibidão", letras que continham palavrões e/ou palavras de baixo calão. Passado algum tempo, o funk carioca tornou-se estilo clássico do Rio de Janeiro, logo depois se instalou em São Paulo, trazendo o funk ostentação, letras que tratavam de temáticas de dinheiro ilícito, carro e jóias, migrando para o funk ousadia, letras que falam de relação sexual, violência, estupro e machismo de forma explícita.


O professor de piano e produtor musical, Augusto Zulú ressalta que o funk americano tinha um teor sensual mas não tão explícito quanto o funk brasileiro de hoje em dia. "O funk sempre foi uma forma de expressão da comunidade. O que antes era uma ferramenta de protesto se transformou numa forma de expressão, de certa forma é natural, da realidade da favela. Mas, vejo que ainda há machismo instalado, algo que vem sendo combatido com o passar do tempo".


Em relação à manifestação popular na música ele afirma que é genuína, porém a importância é relativa. "O funk pejorativo e toda a questão de ser ofensivo e violento, não vejo como importante. A expressão através da música que é importante mas aplicado ao contexto do funk no viés que temos hoje não concordo, não vejo como algo essencial e sim como algo que tem que ser mudado".


Reportagem produzida por Luíza Figueiredo e Matheus De Luca



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